Ser vegana e a favor do aborto é errado?

Tema delicado, o aborto sempre causa discussões acaloradas no Facebook. Entre os veganos não é diferente. Segundo os “pró-vida”, encerrar uma gravidez indesejada é tão imoral e antiético quanto matar um animal não humano, e portanto é incoerente que veganos não sejam contrários a isso. Feminista e vegana, eu discordo, e hoje venho por meio desse textão explicar o porquê.

Antes de começar a discussão em si, alguns esclarecimentos sobre o que é o veganismo, para leigos. O veganismo é um estilo de vida (ou filosofia, como alguns preferem) contra qualquer tipo de exploração animal. Além de não comer carne, não ingerimos ovo, leite, mel ou qualquer alimento que seja proveniente de animais. Não usamos couro, não vamos a zoológicos, não andamos em qualquer veículo de tração animal, e por aí vai. Grande parte dos veganos – me incluo aí – justificam essa escolha dizendo que nós, humanos, não somos “o topo da cadeia alimentar” e não temos o direito de tirar proveito dos bichos ou matá-los, principalmente porque temos alternativas. 

Mas também existem diversos outros argumentos, às vezes envolvendo religião. Para alguns veganos, em particular, consumir ovo, por exemplo, é interromper uma vida em desenvolvimento, e portanto errado. Partindo dessa ideia, não fica difícil de entender porque essas mesmas pessoas também criticam o aborto do ponto de vista ético e moral. E é aí que o angu começa a engrossar.

As fragilidades do discurso “pró-vida”

Apesar de entender a lógica dos “pró-vida”, eu não compartilho desse pensamento porque acredito na ideia que a “vida” só começa aproximadamente no 5ª mês de gravidez, que é quando o feto tem condições de sobreviver fora do útero. “E a história do ovo e das galinhas?”. No caso das galinhas, a mesma história: a gema e a clara que humanos consomem ainda não é uma vida animal. Mas ainda sim eu sou contra o consumo de ovos porque as aves poedeiras vivem em condições precárias, têm suas vidas reduzidas, e mesmo que defendam fazendas com “galinhas felizes”, volto no argumento que dei no começo do texto.

Uma outra consideração a se fazer, e essa eu acho importante acima de tudo, é que veganos são contrários à exploração ou interrupção da vida animal porque eles são seres sencientes, ao contrário de bactérias, fungos e outros reinos. Isso significa que têm consciência, são capazes de sentir dor e perceber o mundo ao redor – da barata que entra na sua casa, passando pelo seu cachorro, até chegar em você, cada animal à sua maneira. 

Apesar de ser um tópico polêmico entre os cientistas, muitos médicos acreditam que o feto só é capaz de “sentir dor” a partir do 8ª mês de gestação. De modo geral, ainda é muito difícil determinar quando começa a senciência dos bebês, e eu e outros médicos creem que não é no momento da fecundação. Partindo dessa noção e da ideia de que a “vida” só começaria por volta do 5ª mês de gravidez, veganas têm mais um motivo para não veem incompatibilidade em serem adeptas dessa filosofia e também a favor da descriminalização do aborto. Mas a discussão é ainda mais complexa que isso.

As mulheres estão morrendo

Enquanto a ciência e a religião não se resolvem (e talvez nunca irão) sobre o momento do início da vida, e para além da questão da senciência animal, mulheres estão morrendo e adoecendo no Brasil porque o aborto é ilegal. E mais: a proibição não está impedindo que elas abortem.

Por anos, são realizadas 500 mil interrupções de gravidez no país – só 1.500 são legais. A prática é realizada por uma a cada 5 mulheres até 40 anos, como aponta a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) realizada pela Anis Instituto de Bioética em 2016. Ainda segundo o estudo, cerca de 48% das mulheres que abortaram completaram o ensino fundamental, e 26% tinham ensino superior. Do total, 67% já tinha filhos, 56% eram católicas e 25% protestantes ou evangélicas.

Com esses números, mesmo que eu fosse uma vegana “pró-vida”, seria coerente ser a favor da descriminalização para que menos vidas cheguem ao fim. Nosso vizinho Uruguai, que descriminalizou a prática em 2012, tem muito a dizer sobre isso: segundo dados apresentados pelo governo, entre dezembro de 2012 e maio de 2013, não foi registrada nenhuma morte materna por consequência de aborto e o número de interrupções de gravidez passou de 33 mil por ano para 4 mil. 

Isso porque, junto da descriminalização, o país implementou políticas públicas de educação sexual e reprodutiva, planejamento familiar e uso de métodos anticoncepcionais, assim como serviços de atendimento integral de saúde sexual e reprodutiva. Daria certo no Brasil, um país muito maior e tão desigual? Não se sabe. Mas o que sabemos é que, mesmo ilegal, ele continua sendo praticado, mulheres estão morrendo e a experiência de outros países mostram que a descriminalização reduziu a prática e tem evitado que essas mortes ocorram.

Ninguém ganha

A discussão sobre aborto dentro do veganismo não se trata de provar se a luta dos “pró-vida” é mais legítima. O veganismo, até onde eu sei, é laico – se alguns escolhem associá-lo à religião, é escolha individual. Cada vegano decide as razões pelas quais luta por sua causa, e esse debate sobre o início da “vida” não desemboca em lugar algum. Sempre bom lembrar o quão perigoso é quando as nossas crenças individuais determinam os rumos da discussão sobre um problema coletivo, que afeta milhares de pessoas que não necessariamente concordam com você.

Sendo mulher e tendo também o feminismo como causa, eu escolhi ser favorável à descriminalização do aborto e não vejo incompatibilidade entre elas. Mesmo que tivesse, eu nunca conheci uma proposta dentro do veganismo que cobrisse, de modo coerente e infalível, as complicações de ter os animais como causa num mundo ainda onívoro e especista. Precisamos assumir que temos algumas lacunas a serem preenchidas. 

Se amanhã a Ágora do veganismo disser que ser adepto da causa e a favor do aborto é errado, eu ainda seria “pró-escolha”. Podem levar minha carteirinha de ativista. Não faz sentido para mim lutar pela libertação dos animais não humanos e não ser contra uma lei que restringe a liberdade dos animais humanos, principalmente quando esses animais são fêmeas como eu.  

Leitura recomendada: “Um Milhão de Mulheres“. 

20 comentários sobre “Ser vegana e a favor do aborto é errado?

  1. Não posso dizer que seja a favor do aborto. Também não sou a favor de todas as teorias veganas, mas assim como respeito as escolhas de quem busca essa filosofia de vida respeito uma mulher queira ter direito de escolha. Não posso apedrejar uma mulher que opte por interromper a gravidez porque não estou na pele dela, não conheço sua realidade, medos e inseguranças. Já fiz parte da campanha pró vida, já fui radical e cheia da razão, mas as pessoas crescem e amadurecem. Acredito que cada mulher seja dona sim de seu corpo, e que obrigar uma mulher a ter um filho em muitos casos pode ser sim um ato de violência. Acredito também que deixar de ser hipócritas com relação ao aborto e tirar ele da clandestinidade salvaria não só a vida de muitas mulheres, sem falar que haveria muito mais chance de uma mulher desistir do aborto em uma consulta legalizada, com médicos éticos e responsáveis que em uma sala improvisada, tendo como conselheiros médicos e auxiliares que lucram com o sofrimento alheio.

  2. Hahhaha Filosofia Vegana Pró- Aborto não se sustenta!
    Ainda mais para uma pessoa instruída , querer dizer que milhares de mulheres pobres ou instruída e não prevenidas morrem…
    Sinceramente !

  3. Sigo ideais veganos (como não usar couro, ir a zoologicos ou outros eventos do tipo), todavia, sou ovolactovegetariana. Não gosto de relacionar as lutas pq sempre o vaganismo/vegetarianismo cagam regra pra cima do nosso corpo. Sobretudo, sou da área da saúde. Apesar que nem é preciso ser pra saber que o aborto é questão de saúde pública. O aborto por volta da 12 semana de gestação de nada tem a ver com a ideia de tirar uma vida, nem é um feto, é um embrião.
    Gostei bastante de como separou os tópicos!

    1. Obrigada, Adeisa! Muito legais suas considerações. Também acho que tem muita cagação de regra nesse meio!

  4. Não sou vegana e sou a favor do aborto.
    Mas o que vc falou do ovo me deixou uma dúvida: qual a justificativa para que veganos a favor do aborto não possam consumir ovos de galinhas criadas livremente (não as poedeiras criadas só pra isso naqueles condições que vc citou) que colocam ovos que virarão pintinhos? Ou mesmo ovos não fecundados?
    E no caso do consumo de leite de uma vaca que vive livremente também com seu bezerro? Como mãe que amamentou três filhos considero que deve sobrar um pouco de leite após a mamada do bichinho. Seria exploração nesse caso ordenhar manualmente uns poucos mls?
    Juro que as perguntas são para minha reflexão. Amo bichos, mas hipocritamente como carne.

    1. Oi, Theísa. Eu não posso responder pela totalidade dos veganos, mas posso dizer que no meu caso, eu parei de consumir leite e ovos por inúmeros motivos, e saúde foi alguns deles, além da questão ambiental. Tudo que eu vou te falar agora você pode assistir e entender de uma maneira super interessante no documentário “Cowspiracy’, que tem na Netflix. Acho que você vai se surpreender. Lá ele fala porque mesmo os ovos e leites orgânicos/sustentáveis não resolvem o problema da exploração animal e muito menos o ambiental. Grande beijo!

  5. Ótimo texto Nyle, e o mais absurdo é que no Brasil existem vários políticos tornando essa possibilidade de descriminalização mais distante ainda e propondo medidas mais severas até para as vítimas de estupro.

  6. Comentei outro dia mas acho que minha msg não foi.
    Questionei sobre a possibilidade de veganos comerem ovos de galinhas criadas soltas com o galo, ovos fecundados ou não. Existiria alguma submissão animal nisso? E tomar leite de vacas criadas soltas com o bezerro, aquele leite excedente que o bezerro não deu conta de beber, é possivel?

    1. Theisa, essa é uma questão muito polêmica dentro do veganismo. Mas isso segue a lógica de que esses animais não devem ser usados nem nesses casos, se a pessoa tiver escolha de fazer diferente. Não estamos falando de comunidades isoladas que dependem de animais pra sobreviver, mas sim de quem pode fazer diferente. Mas de qualquer forma, existem outros motivos pra ser vegano, como os benefícios pra saúde. O consumo de leite, mesmo o orgânico, traz diversos malefícios pro organismo, por exemplo. Um deles é facilitar os processos inflamatórios.

  7. Sou vegetariana, não vegana ainda, mas contra o aborto. No caso, o corpo que vai morrer não é o da frase: Meu corpo minhas regras. É um outro que nem falar pode. Mas provavelmente teria expressões de dor e susto em caso de ser filmado em pleno aborto. No caso a frase deveria ser: “Meu corpo, eu cuido pra não engravidar.” Já que cuidamos pra adiar as rugas, pra manter a saúde e não contrair o que não queremos de ruim. É muito difícil não engravidar hj em dia? Ou é difícil dizer “não”ante a possibilidade de engravidar. Muitas mulheres conseguem planejar a gravidez. Conheço algumas. Mas as favoráveis ao aborto não conseguem? Qto ao nosso útero, não é mesmo o lugar de ninguém falar, só de uma vida se desenvolver. Se a vida começa no quinto mes de gestação? Como as células se desenvolveram até o quinto mês então? Vida é vida. Essa questão é bem,hã, digamos “egocêntrica”. A mulher fala muito “eu”, “meu”, “minha”. Na possibilidade de engravidar deveria ser mais centrada em si mesma do que nunca, para não correr esse risco. Ser vegana/vegetariana é uma coisa. A favor ou contra o aborto é outra coisa.

  8. Não sou vegana nem nada, mas sou pró-vida, depois de muito tempo achar que as mulheres deviam fazer o que bem entendem com seu corpo. Ainda acho que o corpo é nosso, mas um feto mesmo que não seja consciente ainda é um segundo corpo pelo qual somos responsáveis, e mesmo que ele tenha vindo por razões duvidosas e muitas vezes ruins, o ideal é não abortar, ainda mais porque o aborto só elimina definitivamente a questão econômica de se ter um filho (no caso mais grave: a pessoa estuprada vai se sentir melhor depois do aborto ou depois do responsável por isso ser punido…?). E, eliminando a questão econômica, tira a responsabilidade de quem sobre a verdadeira origem do problema (desigualdade de gêneros, discriminação contra as mulheres, violência e a quase certeza de impunidade, analisando o estupro)? Do estado, que não fornece as condições para que mulheres tenham seus direitos respeitados (não só as mulheres, mas enfim).
    Já a questão do aborto por gravidez indesejada, eu acho que não tem como nem discutir a possibilidade de um aborto ser justa.
    Enfim, além de toda essa discussão sobre o aborto, tem uma casa próxima a Brasília que trabalha contra o aborto, ajudando mulheres que querem abortar e tentando convencê-las que esse não é o melhor caminho. Se a moça ainda quiser abortar, OK, mas se decidir que não, ainda pode escolher ficar com o bebê ou ele ir para a adoção. Eles ajudam psicologicamente e financeiramente a mãe, coisas que o estado devia fazer quando aprova aquelas coisas ridículas que o Eduardo Cunha fez pelas vítimas de estupro.
    Eu acho que o problema é muito mais complexo que “meu útero é meu” e começa muito antes da fecundação, e como mulheres aceitar que somente nós temos que decidir a consequência de algo que nem causamos e que só nossa vontade importa não é a solução. O ideal seria que nem tivéssemos que discutir questões como essa, e acho que é por isso que todos devemos lutar, sendo vegana ou não, feminista ou não, porque somos mulheres e justamente o útero é nosso.

  9. eu sou a favor da descriminalização do aborto. Não que algum dia eu vá fazer ou que apoie quem faz, mas acho que cada um pode escolher o que fazer com o próprio corpo. Quanto ao veganismo, eu tenho muita vontade de me tornar vegetariana e até vegana, apesar de ser um pouco difícil, pois desde pequena como coisas de origem animal, e se algum dia eu chegasse a me tornar, não acho que eu ser a favor me faria “menos vegana”; como eu disse, cada um escolhe o que fazer com o próprio corpo.
    amei o seu post! muito legal, diferente e interessante! 🙂
    beijos :*
    http://memorialices.blogspot.com.br/

  10. Nyle, esse papo de que o bebê só tem vida aos cinco meses não cola. Já vi alguns casos de bebês prematuros de três meses que sobreviveram, como este aqui: https://www.youtube.com/watch?v=64WkN17WeJw
    Sinceramente, acho que esse argumento é utilizado para defender o indefensável, que é o assassinato de uma vida humana – indefesa e inocente. Já vi relatos de mulheres que abortaram e nunca mais conseguiram se perdoar, como aquelas que aparecem no documentário Bloody Money sobre o aborto. A tristeza que se vê no semblante delas é indizível. Sabia que os muçulmanos realizaram recentemente um evento para discutir se as mulheres possuem alma? Talvez eles usem o argumento de que não possuam para que assim possam estuprá-las e espancá-las, como eles fazem. Os que levavam a cabo a escravidão certamente também justificavam essa atitude dizendo para si mesmo que os negros eram “selvagens” e não humanos. Acho ridículo pessoas que defendem os animais e ficam cheias de não me toques em relação a eles e aceitam o aborto. Para elas, os animais e o planeta Terra valem mais do que seus semelhantes. Que inversão de valores… Essas pessoas substituem o culto que é devido a Deus para o depositarem no culto ao corpo, ao naturebismo e ao meio ambiente. Saiba que, crendo em Deus ou não, Ele existe e castiga os transgressores de seus mandamentos, que entre eles se inclui o de não matar. E castiga também aqueles que levam os outros a pecar, direta ou indiretamente. Jesus disse: “é inevitável que ocorram escândalos. Mas ai daqueles que provocam escândalos! Melhor seria que não tivesse nascido.” O escandaloso é aquele que leva os outros a pecar. Se, por conta deste post que fizeste, uma garota ou mulher resolver abortar, você terá responsabilidade nisso diante de Deus.

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